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KINEMA: MATRIX, Muito mais que luz ou magia



Depois de alguns minutos assistindo Matrix (The Matrix, de Andy e Larry Wachowski. EUA, 1999, 144 min.), não há como não se impressionar. Os motivos para esse abalo podem ser variados, e os mais impactantes podem até ser os efeitos especiais. Ora, é um filme de ficção científica, nada mais natural que ser envolvido pela magia da arte gráfica antes de qualquer outra coisa. E se isso não acontece espontaneamente, é necessário desarmar-se de preconceitos em relação ao uso desses artifícios - exercício este que boa parte das pessoas, entre elas os mais ávidos cinéfilos, já praticam inconscientemente, para depois se dizerem impressionados ou decepcionados. Matrix é diferente. É um erro comentar efeitos especiais isoladamente, ou sobrepô-los às complexas referências, discreta e inteligentemente esmiuçadas pelos irmãos Wachowski.
Primeiramente, não queira assistir ou analisar Matrix relevando uma suposta inverossimilhança que justifique história, ação e efeitos. Matrix não se trata de relevâncias. Vejamos o filme da maneira mais agnóstica possível. Alguns fatores que são apresentados no filme de maneira ríspida, podem não ser bem interpretados ou podem ser desconsiderados, tanto do ponto de vista conceitual como prático.
Para que se absorva tamanha minuciosidade com o filme, vale lembrar que Matrix é, primeiramente, uma inovação no gênero de ficção científica. E é mais inovador pelos debates que proporciona, do que pelos recursos tecnológicos que coleciona. Matrix traz originalidade na sua linguagem, principalmente. No modo de transmitir um ponto de vista e de sensibilizar através de uma cautelosa crítica ao desenvolvimento das tecnologias relativo às comunicações. Isso justifica uma concentração e uma reflexão um pouco mais extensos sobre o filme - entender o que se constrói pelas intenções subversivas e diretamente provocantes de Andy e Larry Wachowski é um exercício, no mínimo, interessante - quando não revelador. Isso não significa, porém, que seja a melhor e maior obra de ficção científica de todos os tempos - são outros os méritos de Matrix que justificam tal enveredamento.
A predestinação
Os porquês da tamanha superioridade e confiança colocados na personagem principal.
Hoje, o contato que temos com o ciberespaço já é algo revolucionário. O desenvolvimento desse tipo de tecnologia é tangente às mais diferentes atividades profissionais, e coloca-se como um dos mais fortes avanços dos meios de comunicação na história. Estudos acadêmicos e científicos diversos mostram o quanto estamos atuantes e próximos a este acontecimento, e o colocam, sem medo, como a maior revolução tecnológica já ocorrida desde a Revolução Industrial. Um dos maiores teóricos atuais sobre as novas tecnologias de informação, o cientista social Manuel Castells, vai mais longe, colocando a revolução pela qual passamos hoje como a mais importante, a mais decisiva de todas, apontando que "ao redor deste núcleo de tecnologias da informação, (...) uma constelação de grandes avanços tecnológicos vem ocorrendo, nas duas últimas décadas do século XX, no que se refere a materiais avançados, fontes de energia, aplicações na medicina, técnicas de produção (existentes ou potenciais, como a nanotecnologia) e tecnologia de transportes, entre outros." [CASTELLS, Manuel - A Sociedade em Rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.] Castells afirma em sua obra que, paralelamente à abrangência de ciências que tal revolução atinge, é também a que aglomera dentro de sua pirâmide desenvolvimentista o maior número de pessoas, direta ou indiretamente.
Dentro deste fato, podemos levantar no mundo real algumas personagens de destaque nessa atividade, como programadores de software, processadores de dados, engenheiros eletrônicos e operadoras de telemarketing. Mas entre eles, com certeza, os mais marginais, precipitadamente temidos, muitas vezes astuciosos, são os hackers. Usemos, aliás, o termo hacker na concepção moderna da palavra, entendendo-se por eles como navegantes piratas, muitas vezes invasores ou ladrões de conteúdo informacional na Internet. Conforme explica Howard Rheingold, na trajetória histórica das comunidades em rede analisada em A Comunidade Virtual [RHEINGOLD, Howard - A Comunidade Virtual. Lisboa: Gradiva, 1996.], hacker já foi uma denominação usada pura e simplesmente para jovens programadores de computador nas décadas de 60 e 70, nos Estados Unidos. Neo (Keanu Reeves) é um hacker do estilo "invasor". Na verdade, no filme, ele é um dos melhores entre eles, o que não o faz, ainda, ser a personagem principal. Ao contrário, quando retirado da matrix, Neo encontra outros hackers, que também descobriram a matrix, e são tão bons quanto ele. Aliás, Neo teve sua "oportunidade" de desvencilhar-se da matrix por dois fatos que convergem num determinado ponto, envolvendo-lhe na trama que desenrola pelo resto do filme: ele acha a matrix, pouco tempo depois é achado pelos outros hackers, e perseguido pelos anti-terroristas. Jeremy Bentham, citado também por Rheingold, trabalhava estes segregados tipos de manipulação e observação ainda no séc. XVIII, formando o modelo teórico da escola panóptica que, como diz o estudioso, adapta-se totalmente às possibilidades reais das tecnologias modernas: "Os mesmos canais de comunicação que permitem aos cidadãos de todo o mundo comunicar entre si, permitem igualmente aos governos e interesses privados saber coisas sobre cada um de nós." [RHEINGOLD, Howard - A Comunidade Virtual. Lisboa: Gradiva, 1996.]
Mas se não é o simples fato de ser um privilegiado entendedor do ciberespaço que o torna especial, o que coloca Neo como herói entre seus comparsas é uma singularidade: sua predestinação. Os mais céticos, alarmados pela parcela mística num contexto totalmente tecnológico, criticam este aspecto do filme. Mas não seria natural que, num filme sobre xadrez, por exemplo, um personagem inspirado em Kasparov fosse eventualmente o herói, justamente por ser alguém especial entre tantos enxadristas do mundo, diante do mortal inimigo, o computador Blue Ocean? Ou que, no século XVII, Galileu fosse alguém especial entre os cientistas da época, um "predestinado", derrotado na temível batalha que travara com a Santa Inquisição, por profanar a astronomia? Exemplos como estes, por mais simplórios que pareçam, são ao menos ilustrativos, além de outros inúmeros destacáveis ao decorrer da história das ciências, das artes, dos esportes, da política e religião.
Mas os hackers, justamente por fazer parte de sua especialidade a marginalidade, não se deixam expor, e não sabemos quem são os Kasparovs e Galileus do mundo virtual. Neo é fictício, mas poderia muito bem ser realidade. E uma fagulha de espiritualidade dentro deste universo não é ofensivo, e sim só mais uma factível constatação de como estaremos sempre presos a simbologias, ainda que desenvolvamos cada vez mais nossa tecnologia.
O apocalipse
Uma análise das futuras possibilidades apocalípticas, e a correlação à suposta inverossimilhança do filme.
Outra faceta do filme que é constantemente atacada por questionamentos (sobre sua plausibilidade) é o seu contexto apocalíptico. A degradação ambiental, as guerras biológica e nuclear, as pestes e epidemias são fatores que constantemente ameaçam a perpetuação da vida humana no planeta. Contra estes fatores, a ciência procura defender-se e aprimorar-se a cada dia, com destaque para as comunicações, a inteligência artificial, a genética e a cibernética. É sempre importante ter em mente que, por maiores que sejam as vantagens imediatas de tal desenvolvimento, a forma desorganizada e pluralizada com que ele se coloca é assustadora. E, considerando essa trajetória irregular, não somente no que diz respeito ao seu crescimento isolado, mas também a toda desarmonia social, cultural e econômica que a acompanha, as certezas sobre uma prosperidade tecnológica andam bem enevoadas. É desse modo que o filósofo Pierre Lévy coloca suas precauções quanto a uma análise otimista desse processo. Assim, Lévy pergunta a si mesmo como poderiam opor-se máquina e homem tão radicalmente. Não pela incompreensão da previsão, mas pelos cuidados a que ela remete. A elaboração serena e fria de tais possibilidades são sempre convergentes: "Toda a eficácia de um e a própria natureza do outro (homem e máquina) se devem a esta interconexão, esta aliança de uma espécie animal com um número indefinido, sempre crescente de artefatos, estes cruzamentos, estas construções de coletivos híbridos e de circuitos crescentes de complexidade, colocando sempre em jogo as mais vastas, ou mais ínfimas, ou mais fulgurantes porções do universo." [LÉVY, Pierre - As Tecnologias da Inteligência. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.] Nada me parece mais natural que um cenário onde, após um descomedido desenvolvimento dessas tecnologias promovidas pelo próprio homem, as criaturas resultantes desse processo se voltem contra seus criadores, justamente por perceberem que são a eles superiores, e por também constatarem que eles delas dependem para sobreviver a uma ininterrupta autodestruição da espécie.


Pelas bases desses estudos tecnológicos, e mesmo falando de maneira mais factual, trata-se de pura observação científica. Projeções hipotéticas diferem-se de análises empíricas por sua lógica concebível, e aí entra o tipo de previsão levantada pelos autores, que lida com o simples predomínio funcional daquele que melhor se adapta aos meios oferecidos - conhecida também como darwinismo. Máquinas, como seres dotados de inteligência e de capacidade de criação, seriam totalmente independentes dos seres humanos e distinguir-se-iam destes por não prescindirem da natureza tanto quanto eles. O homem, em contínuo processo entrópico, dizima suas fontes naturais ao mesmo tempo em que a tecnologia evolui, tornando-a mais capaz e essencial como uma alternativa artificial aos recursos originais da physis. Logo, as máquinas estariam um degrau acima na evolução das espécies, e, bastando a elas uma fonte da qual pudessem tirar energia, dominariam facilmente quaisquer outros que tentassem subjugá-las. Uma vez que o próprio corpo humano é produtor de energia, seja ela cinética, térmica, potencial, etc., se mantidos em conservação, em atividade biológica constante e entretidos com uma suposta realidade (a matrix), a energia necessária estaria lá, a disposição das máquinas - de acordo, assim, com os pressupostos de interdependência de Lévy, levantando, ainda, uma especulação caótica. Assim reconstruímos o mundo pensado pelos Wachowski, onde máquinas brincariam de videogame com pessoas, enquanto tentassem aniquilar os poucos humanos que, acordados de seu estado imberbe (claridade ironicamente conquistada pelo perfil proporcionado pelo próprio ser dominante, o perfil hacker), tentariam livrar tantos outros que permanecessem em torpor. Portanto, a matrix tanto poderia ser realidade que, divagando sobre todo o caos que o homem causa e ao mesmo tempo tenta consertar, chegamos a pensar se já não estamos nela.
Pronto. Os irmãos Wachowski já têm nas mãos quase todas as desculpas necessárias para conduzir ótimas cenas de ação e ficção. Pois uma vez que a matrix é uma simulação de computador, é totalmente compreensível que aqueles que nela se encontram conscientemente possam ter quaisquer habilidades que queiram e precisem, através de um simples upload. Mas então se levanta a capacidade sobre-humana, como pular alturas inacreditáveis e desviar-se de projéteis. Para discutir este ponto, é necessária uma abordagem um pouco mais psicológica que científica.
O heroísmo
O alcance das simulações dentro da matrix: pura hemorragia ficcional ou detalhada constatação de realidade?
Então, temos agora em discussão a superação daquilo que, por já não ser humanamente possível, torna-se inacreditável. Que extensões virtuais dos personagens atuem na matrix, e que dentro destas simulações estes acúmulos de informações binárias possam recorrer a um programador de computador para adquirirem, assim, maiores habilidades, tudo bem. Mas como os irmãos Wachowski se rescindem dos superpoderes de seus personagens?
O mundo tratado pelos autores é, na verdade, um mundo de pura alienação (o que, aliás, faz parte também de um contexto ideológico do qual trataremos adiante). Lá, a simulação tanto física como psicológica, são perfeitas. A navegação pela matrix proporciona desde o mais íntimo orgasmo, até a dor mais forte que um ser humano pode sentir. Fabrica-se na cabeça das pessoas desde o nascimento da mais incendiosa paixão, até a mais desgraçada e inconsolável vontade de suicídio. E, seja lá por suicídio, acidente, doença ou assassinato, morre-se tão verdadeira e dolorosamente na matrix, que no mundo real, fisicamente, morre-se também, por pura sugestão psicológica.
Para o grupo de hackers, tratados pelas máquinas como "terroristas", a impressão de realidade transmitida pela matrix é, no entanto, falaciosa, digna de desconfiança. Pois, simplesmente, possuem a consciência de que aquilo é forjado, e que, justamente por não se tratar da realidade, aquilo não deve ser sempre relevado. Na interpretação dos hackers, por exemplo, um simples dejà vú dá a deixa de que aquilo representa uma alteração no cenário que já estava em andamento. Esse tipo de percepção passa inerte a todos os outros seres humanos que vivem na matrix. O grupo de "terroristas", no entanto, podem se dar o luxo de dar um salto maior que o possível, por saberem que fora da realidade, numa situação inimaginável, seus saltos podem ser igualmente inimagináveis. Porém, exatamente como os outros humanos, eles possuem limitações - menores, é verdade - mas da mesma forma impactantes no mundo real, caso excedidas.
Voltemos a Neo. Mais uma vez, os autores podem ser argumentados, pois não seria a simples predestinação de Neo que o faria mais invencível. Porém, a personagem principal passou por séries de acontecimentos enquanto vivia na matrix que, como já discutimos aqui, tornaram-lhe especial. Não por simples qualificação espiritual, mas por experiência adquirida mesmo. Como já foi colocado, Neo mereceu sua chance fora da matrix por suas excepcionais habilidades internautas. Sua bagagem e experiência nesse tipo de atividade não só lhe envolve de curiosidade - pois é a partir de uma curiosidade e uma necessidade inata de conhecimento que os hackers aperfeiçoam-se mais e mais -, como também lhe acrescenta uma notável sensibilidade. O que os autores pretendem caracterizando Neo como "predestinado" - alguém diferente dos outros que pode, na matrix, desviar-se de balas e até voar -, é atribuir a ele essa sensibilidade "digital". Neo, por atingir um maior equilíbrio emocional e por possuir essa percepção diferenciada, consegue, melhor que os outros, separar sua existência real de sua existência on-line. A certa altura, ele já não sofre mais sugestões psicossomáticas, por, simplesmente, estar extremamente consciente de sua posição dentro da matrix, e por conseguir, de maneira única, discernir que aquilo que acontece fisicamente no local são somente combinações binárias. Tanto que, a partir deste momento, Neo enxerga na matrix códigos binários formando imagens, e não mais as representações virtuais de tais códigos. Ele sabe que, apesar das sensações e estímulos ali fabricados, no mundo material o corpo permanece pensante e intacto.
O idealismo
Da mitologia grega à cultura digital - as referências de Matrix para a crítica ao indivíduo e à sociedade.
Talvez, para muitos, debater a subversão implícita em Matrix seja chover no molhado. Mas seria incauto demais justificar alguns porquês formais e não se adentrar no conteúdo. Ainda mais quando se trata de algo tão substancial, como o que é expresso no filme.
O filme, primeiramente, trata de dois tipos de mal comuns da sociedade de fim-de-milênio: manipulação e incomunicabilidade. Para tal, os irmãos Wachowski usam diferentes artifícios, e os aplicam de maneira sinuosa.
O próprio figurino, que inspira um tipo de relação menos complexa, vai desde os ternos impecáveis dos agentes antiterrorismo, até a vestimenta negra e renitente dos hackers, melhor forma de definir a batalha de uma facção libertária, porém receosa, contra outra já estatizada, consistente, que pretende somente manter a ordem por esta compreendida e estabelecida.
Em meio a essa luta, quando colocada à frente de Neo a chance por uma opção existencial, Morpheus (Laurence Fishburne) lhe oferece duas pílulas. Uma, vermelha, um placebo, o conformismo, a volta ao pseudocotidiano urbano e à infernal ilusão material. A outra, azul, a determinação, a busca pela verdade encaixotada, substituída por impulsos nervosos de sensações fabricadas por computador. A forma "farmacêutica" da escolha ainda traduz uma opção entre a cura e o alívio psicológico: uma pílula transfere conhecimento, a outra, esquecimento. E a escolha, por si só, não passa de uma realidade meramente hipotética, com as formas e os alcances planejados por Morpheus.
Os nomes das personagens, aliás, tem muito a dizer isoladamente, desvinculados de suas funções coletivas e de suas circunstâncias potenciais. Morpheus é originalmente o deus grego dos sonhos, filho do sono e da noite. Em Matrix ele é o senhor das verdades, pois representa a possibilidade de libertação da simulação imposta pelas máquinas, ou a possibilidade de reanimação de um torpor, de um sonho. Trinity (Carrie-Anne Moss), ou em português, Trindade, é a representação da esperança por uma misteriosa união, conceito primeiramente católico (caracterizado pelo Mistério da Santíssima Trindade: a união do Pai, do Filho e do Espírito Santo). A união de Trinity é prevista como a chegada do predestinado, do messias, do salvador, o Filho. Simbolicamente, quase um Jesus de Nazaré, salvo o misticismo puramente psicológico amarrado ao enredo do filme, tirando, assim, o peso da religiosidade gratuita ou desnecessária das costas de Neo. E este, a personagem principal, surge como a novidade, o novo, ou novato, transportador de desgraças ou esperanças. Aquele em quem são feitas as últimas apostas, o último voto de confiança. Tanto que os conflitos entre a sua real capacidade de mudança e a tentativa de reafirmação perante a uma provável especulação pictórica são constantes. A figura de um Oráculo, responsável por essa colocação ao hacker, representa a ponte entre a alienação e a constatação, e fecha o círculo idealista, trazendo uma harmoniosa aparência de neutralidade. Colocada como uma visionária, um Oráculo é, na mitologia, um contato entre deuses e mortais; no filme, aquela que tem consciência da matrix mas, ainda assim, transforma nela o seu laboratório. Lá reúne as percepções do que é real (divino) e do que é simulacro (mortal), transformando-as, através de indução e sugestão, em previsões - presságios sobre um provável futuro.


Existem ainda dois ícones da tecnologia atual, que marcam sua presença durante todo o filme e entrelaçam as personagens ao contexto caótico e desesperançado que vivem. Ainda que pareçam ser tratados de maneira óbvia, tais ícones são fundamentais para a evolução do raciocínio crítico, e nestes tempos atuais seria inevitável que fossem estes os instrumentos de argumentação ilustrativa que os Wachowski usassem.
O primeiro deles é o telefone. A evolução desse aparelho, desde os tempos do telégrafo, pode ser considerada a mais importante no que diz respeito à possibilidade comunicativa espacial. Os marcos dentro dessa evolução são variados: a discagem a partir do domicílio (que extinguiu as telefonistas), a ligação a longa distância, a discagem em tom, a ligação via-satélite, o telex, o tele-facsímile, a conexão por fibra óptica, até chegarmos ao modem - que possibilitou conectar o computador a uma linha telefônica, e daí para a Internet. É à sombra deste alcance comunicativo que ficam as aparições do telefone no filme. O log off das personagens na matrix são realizados através de telefones, muitas vezes os salvando de situações-limite, de momentos de extremo perigo on-line. Perceba que o telefone não precisaria ser, de modo algum, o instrumento de desligamento da matrix. Esta explicação pode ter ficado um tanto obscura no decorrer do filme mas, teoricamente, dentro de um simulacro digital, os pontos de conexão com o mundo off-line poderiam ser quaisquer: aqueles que emitissem ondas de rádio, por exemplo, ou qualquer outro tipo de sinal. Também é o caso de telefones celulares (também usados pelas personagens), que usam sinal digital, diferentemente dos telefones públicos, que usam tecnologia analógica. A telefonia foi só um instrumento para que se estabelecesse um portal de diálogo entre estes dois universos. Este instrumento foi escolhido não só pelos próprios hackers (pode-se trabalhar com a hipótese de que se foi instituído que o log off seria realizado através da unidade telefônica mais próxima, por questões de compatibilidade de informação digital), mas principalmente pelos Wachowski, pois, como já foi dito anteriormente, é o aparelho cuja evolução melhor representa, paralelamente, a evolução das telecomunicações. Assim, procura-se dizer que a comunicação é necessária. Reforçando, literalmente, a máxima de Abelardo Barbosa: "quem não se comunica, se estrumbica.” A falta de comunicação é um primeiro alerta colocado pelos diretores. Talvez, pela maior comunicação entre os indivíduos humanos, a destruição de tantos sonhos e utopias não teriam acontecido. Agora, a comunicação entre os mesmos que ainda resistem conscientemente garante sua sobrevivência.
O outro ícone que sofre referências seguidas é a televisão. Ela é uma constante no filme. Sua presença é quase que imperativa, e quando não, é ao menos apreensiva. Através dela enxerga-se tanto a realidade, como o simulacro da matrix. Os dois fatos, astuciosamente colocados para Neo através do primeiro modelo delas (o tubo chamado de Orticon, da RCA, que fora industrializado a partir de 1945 [VALIM, Maurício - Tudo sobre TV. http://users.sti.com.br/mvalim, 1998.]), questionam a razão de ser desse aparelho: formador ou manipulador de opinião? A sua presença constante na rotina de todo o mundo ajuda a fornecer diversas informações, tornando-se assim determinada pessoa apta a escolher seu ponto de vista, a formar o seu apoio idealista? Ou tal presença somente lida com informações filtradas, que guiam o pensamento individual para uma coletividade crítica, que concorda com os transmissores dessa mesma informação? Ou, ainda, seria a televisão um grande amontoado de ambigüidades, de contradições, uma óbvia causa do pós-modernismo, que serve somente para alienar e emburrecer seus espectadores, e torná-los inertes a qualquer critério de seleção cultural? Apesar de tais perguntas estarem à espreita da descoberta no decorrer do filme, as respostas não estão. As respostas estão ao nosso cargo, ou seja, a própria platéia tem - exatamente como colocado nas questões - a chance de formar uma opinião concisa, ainda que favorável ou não; ou de simplesmente deixar o cinema achando que se trata de mais um filme de ficção científica, comentando os efeitos especiais; ou, simplesmente, não pensar nada, restando-lhe a inércia conseqüente de diálogos confusos e cenas rápidas e barulhentas. A deixa pessimista dos diretores é explícita, porém não ostensiva. Porque a alternativa de salvação à comunicação unilateral da TV é a mesma que tira Neo de seu torpor: a rede. Citando mais uma vez Rheingold, ao lembrar como fora a introdução do Big Sky Telegraph nos EUA (um dos projetos educacionais que, pioneiramente, visava estabelecer sistemas de BBS nas escolas da região rural de Montana, em 1988): "Este conceito de comunicação multilateral (...) possui um potencial muitas vezes ignorado pelos conhecedores das anteriores revoluções comunicacionais. A maioria deles encaram os meios de comunicação de massas como meios unilaterais, em que massas representam uma numerosa população de consumidores que pagam para obterem informação fornecida por um reduzido número de indivíduos que lucram com o controle desse canal de informação: é o paradigma da difusão." [RHEINGOLD, Howard - A Comunidade Virtual. Lisboa: Gradiva, 1996.] Um paradigma multilateral, no entanto, demorou-se por ser aceito - e agora, que já parece estabelecido, representa para muita gente uma alternativa aos meios convencionais e viciados. No filme, a Internet é a criatura que mais uma vez se junta ao seu criador, após já ter lutado contra ele. Ela não é confiável - e até à clarividência de Neo, é só parcialmente dominada -, mas neste mundo retratado pelos Wachowski é a única saída (e também a única entrada) para fazer valer uma sobrevivência consciente. E digna.
Últimas considerações
Matrix é um filme complexo, porém não é um filme pretensioso. Como já foi dito, e vale a pena ser sublinhado, trata-se de uma obra com a capacidade de conquistar por diferentes aspectos: efeitos, roteiro, atores, ação, idéias, música, edição, etc. E é admirável até por cada um destes isoladamente. Não é um filme perfeito, e nem a melhor obra de ficção científica de todos os tempos, mas sem dúvida possui uma linguagem e, principalmente, uma crítica sócio-política que tiveram pouco destaque na imprensa, ou mesmo na própria comunidade cinéfila. Seja lá pelos Wachowski (o passado cinematográfico dos irmãos não é lá muito brilhante), ou pelo Keanu Reeves (que também possui um bom time de críticos mordazes), ou mesmo pelo lançamento do Episódio I de Star Wars - é fato que alguns meandros do filme passaram desapercebidos.
Por isso vi a necessidade de redigir algo um pouco mais aprofundado sobre o filme. Mesmo que pareça tedioso um texto longo, com citações e um ritmo acadêmico, muitas vezes este se faz mais eficiente para trabalhar com um raciocínio lógico e linear. Encaro a probabilidade de recusa e até desculpo-me para aqueles que, corretamente, levantam a bandeira da simplicidade em textos sobre cinema. Embora a finalidade aqui tenha sido outra, aproveito-me do pretexto de debate para também chamar a atenção para alguns pontos trabalhados subjetivamente nas críticas até então.
Também peço desculpas pelo atraso em entregar o texto. O filme ainda não saiu de cartaz, mas já faz três meses que estreou, o que deveria ter me obrigado a esforçar-me um pouco mais na finalização da análise. Infelizmente, o tempo que tive em julho para que, junto a Rodrigo Flores, pudesse dar os primeiros passos para colocar no ar o Cine-Debate, e as outras atividades profissionais e universitárias que me asfixiaram nos últimos dois meses, acabaram por fazer com que desse sempre um "empurrãozinho" nesse texto.
Agora, irremediavelmente, está aí. Espero que traga novidades, ou ao menos discussões. O importante é fazer valer a proposta inicial: levantar opiniões. E que sejam injúrias ou elogios, mas que ao menos sejam.
Bibliografia
CASTELLS, Manuel - A Sociedade em Rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
RHEINGOLD, Howard - A Comunidade Virtual. Lisboa: Gradiva, 1996.
LÉVY, Pierre - As Tecnologias da Inteligência. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.
VALIM, Maurício - Tudo sobre TV. http://users.sti.com.br/mvalim, 1998.
Apêndice
Abaixo vão alguns filmes que serviram, de uma forma ou de outra, como fonte de inspiração para certos aspectos estéticos explorados por Larry e Andy Wachowski em seu filme. A mistura de clássicos e filmes de ação que só valeram a bilheteria reflete propositadamente o pastiche de Matrix. Confira aqui os títulos e a cotação:
● 2001: uma odisséia no espaço (2001: a space odyssey, de Stanley Kubrick. Inglaterra / EUA, 1968, 156 min.)
Cotação: *****
● Punhos de Dragão (Tang shan da xiong, de Wei Lo. Hong Kong, 1971, 100 min.)
Cotação: ***
● Alien, o oitavo passageiro (Alien, de Ridley Scott. EUA, 1979, 117 min.)
Cotação: ****
● Blade runner, o caçador de andróides (Blade runner, de Ridley Scott. EUA, 1982, 117 min.)
Cotação: *****
● O Exterminador do futuro (The Terminator, de James Cameron. EUA, 1984, 108 min.)
Cotação: ***
● O segredo do abismo (The abyss, de James Cameron. EUA, 1989, 140 min.)
Cotação: **
● O vingador do futuro (Total Recall, de Paul Verhoeven. EUA, 1990, 113 min.)
Cotação: ***
● O demolidor (Demolition Man, de Marco Brambilla. EUA, 1993, 110 min.)
Cotação: *
● Os Doze Macacos (Twelve Monkeys, de Terry Giliam. EUA, 1995, 129 min.)
Ighor Ribeira

Demetrius Abba
http://br.groups.yahoo.com/group/Estacao_Palavra/

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