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Watchmen ultraviolento não valoriza a ambiguidade dos quadrinhos


Não há filme mais esperado na história por leitores de quadrinhos que “Watchmen”. Nem mais temido. A HQ foi escolhida pela revista “Time” um dos 100 romances mais importantes do Século 20. Mas para os iniciados, é muito mais que isso. Porque é uma paixão. Porque é muita história para duas horas. Porque é infilmável.

O filme se intitula “baseado na mais aclamada graphic novel de todos os tempos.” Verdade e mentira. Verdade porque “Watchmen”, de 1986/7, mudou completamente a maneira como quadrinhos são criados, comercializados, compreendidos, percebidos pelo grande público. Nada foi igual depois.

E, mais importante para gerações de leitores de HQ, fez os leitores adultos de gibis de super-herói se sentirem tratados como adultos. Nada de crash, pow e bang!

Mas “Watchmen” não é uma graphic novel, um romance composto por imagens sequenciais e texto. É um gibi. Foi pensado e publicado como gibi, uma minissérie de 12 revistas, as histórias depois reunidas numa edição única. Os personagens são super-heróis, tem poderes e uniformes bizarros, brigam à toa etc.

Os criadores na época não eram nada aclamados. O roteirista Alan Moore e o desenhista Dave Gibbons eram dois criadores ingleses que lutavam para pagar as contas. Vinham de alguns anos de experiência na HQ inglesa comercial, principalmente histórias de ficção-científica na revista “2000 AD”.

Gibbons nunca mais superaria seu trabalho em “Watchmen”. Porque Moore é o cérebro da dupla. Depois faria mais e melhor. Ama quadrinhos mais que qualquer outra forma de expressão - às vezes sugere que a considera superior às outras. E conhece e adora a história, as convenções e as revoluções da HQ.

Mas não é nerd, não é otaku, não é fechado. É onívoro, ambicioso, intelectualizado, politizado, leitor voraz, rocker e carismático.

Louco também. Moore é mago. Sério. Adora um deus serpente chamado Glyphon. Promove rituais em sua homenagem, alguns públicos, com música e dança. Ermitão, não sai de sua cidade, Northampton, mas lá é figura fácil no pub da esquina. Aliás, nem tem passaporte.

Espírito livre, abriu mão da grana e cobranças de Hollywood em favor de seus desenhistas e co-criadores. Já foram adaptados para o cinema suas HQs “A Liga dos Cavaleiros Extraordinários”, “Do Inferno”, “V de Vingança”. Ele não viu nenhum. Não gosta de cinema.

Recentemente, abandonou de vez as grandes editoras. Sua última provocação, o pornográfico “Lost Girls”, e logo a próxima encarnação da Liga dos Cavaleiros Extraordinários, saem pela nanica Top Shelf.

Tive o prazer de publicá-lo duas vezes. Na Conrad lançamos seu único romance, “A Voz do Fogo”. Na Pixel, o Monstro do Pântano e sua despedida dos quadrinhos comerciais, no selo America’s Best Comics, incluindo meu favorito, Promethea. Tem muita coisa dele publicada aqui, pela Devir, Panini, Via Lettera. Recomendo tudo.

“Watchmen” combina incrível ambição criativa com seu amor pelos chavões dos gibis de super-herói. Nasceu em 1985 como proposta de reinvenção de um grupo de heróis de segunda categoria, cujos direitos tinham sido recentemente comprados pela DC.

Criados de encomenda para a editora Charlton nos anos 60, esses personagens nunca fizeram grande sucesso, mas tinham lá seus cultores. Dick Giordano, editor da linha da Charlton, era no final dos 80 influente na DC.

Eles são Capitão Átomo, Questão, Besouro Azul, Nightshade, Pacificador e Peter Cannon, Thunderbolt. Moore propôs colocá-los num cenário realista e tentar responder :“o que aconteceria na política e na cultura do mundo se realmente existissem super-heróis?”.

A DC vetou. Tinha planos para os personagens (que hoje ainda dão as caras nos gibis da editora). Moore criou então outros personagens novos, com basicamente os mesmos poderes e perfis psicológicos - respectivamente Dr. Manhattan, Rorschach, Coruja, Espectral e Comediante e Ozymandias.

É fascinante acompanhar o processo de transformação dos heróis da Charlton nos Watchmen. E desconcertante descobrir o nível de detalhamento dos roteiros de Alan Moore. O livro “Watching the Watchmen”, publicado aqui em edição primorosa pela Aleph, é obrigatório não só para fãs de Watchmen, mas para qualquer um interessado em criação.

Watchmen funciona muito bem justamente porque é um grande gibizão. O argumento é bem direto. Em um mundo muito similar ao nosso, mas modificado pela presença de seres superpoderosos (onde, por exemplo, a atuação do onipotente Dr. Manhattan fez os EUA vencerem a Guerra do Vietnã), alguém está assassinando heróis aposentados. Quem será? E o que isso tem a ver com a ameaça crescente de guerra nuclear?

Essa história é contada usando diagramação simplíssima - quase sempre os famosos nove painéis por página, consagrados na HQ americana nos anos 40. Os desenhos são muito tradicionais.

A experimentação fica por conta da maneira de contar a história - repleta de flashbacks, citações circulares, referências visuais, variações de cor, textura - e da ambiguidade moral dos personagens e do próprio contexto político onde eles atuam. Em Watchmen, você nunca pode ter muita certeza de quem está fazendo a coisa certa. Permite leituras diversas. Permite leituras repetidas. Não conheço ninguém que tenha lido Watchmen só uma vez.

O diretor da adaptação, Zack Snyder, prometeu aos fãs: o filme seria a graphic novel filmada - “meu objetivo é que quem assistir saia e vá correndo comprar o original, nada mais que isso.” Euforia geral.

Snyder é especialista em homenagens. Seus filmes são muito respeitosos com as obras que os inpiraram. A refilmagem “Madrugada dos Mortos” fica devendo ao original de George Romero no quesito sátira, mas só. “300” é tão truculento e estilizado quanto a graphic novel de Frank Miller.

Superficialmente, o filme é fiel mesmo. Talvez seja pouco atraente para quem não leu o original. Mas as duas horas e quarenta passam rápido, o que não é pouca coisa, e estão recheadas de pequenos prazeres para os iniciados. Frases e mais frases foram tiradas diretamente do texto original de Moore. Enquadrações de câmera decalcadas da arte de Gibbons. Personagens e cenários secundários e terciários da HQ estão lá, nem que por um instante.

A aparente fidelidade cega oculta uma traição profunda. Porque a ambiguidade está no coração de Watchmen. Mas não no filme.
Como a melhor cultura pop, a obra de Moore e Gibbons comenta o presente - no caso, 1986, quando foi escrita. Era um planeta dominado pelo convervadorismo político e de costumes, que vivia os estertores e aguçamento da Guerra Fria, sob Thatcher na Inglaterra e Reagan nos EUA.

Mesmo assim, a história não oferece respostas fáceis. Não é um mero ataque aos direitistas. Liberais frouxos são igualmente despedaçados por Moore - o psiquiatra que trata Rorschach é inesquecível. O desfecho da aventura é o triunfo chocante da “real politik”. Mas não é essa, ainda, a palavra final de Moore, como revela a última página da HQ.

E “Watchmen”, o filme? Para começar, nada tem a ver com a Terra em 2009 (o que talvez fosse esperar muito de Snyder: dar um update histórico mantendo a coesão conceitual).

Esteticamente, o filme é sombrio, chuvoso, urbano. Os heróis ganharam perfumes modernex - o caso mais gritante é do Coruja, um gordo impotente e desajeitado na HQ, que virou um Batman. As cenas de combate são minuciosamente coreografadas, modelito “Matrix” (e “300”). Violento paca - sangue jorrando, fraturas expostas de roldão. Tem cenas de sexo, bundas de fora, e o pinto do Dr. Manhattan brilhando azulzinho. O conjunto tem a pinta de “O Cavaleiro das Trevas”, produzido pela mesma Warner, e fenômeno de bilheteria.

A abordagem é equivocada. A história de Moore e Gibbons não é um drama policial. É ficção-científica. Como as melhores do gênero, utiliza uma variedade de gêneros - do realismo psicológico à comédia de costumes, do terror à space opera até, sim, o policial “hard-boiled” à Mickey Spillane.

A história ganhou um vilão muito bem definido, que tem contornos de vilão desde sua primeira aparição, logo no primeiro ato. Enfraquece a trama e telegrafa o final. Parece imposição do estúdio após testes com audiência

E ganhou também um herói muito claro: Rorschach. A chave para entender “Watchmen”, o filme, está na seleção de Rorschach para conduzir a trama - que nos quadrinhos era polifônica, com espaço para a investigação profunda de cada um dos personagens principais.

Rorschach abomina a ambiguidade. Não tem dúvidas de que está fazendo a coisa certa, sempre. É linha dura. Culpado tem que pagar, bandido tem que morrer. Nada mais importa. Conchavos, “nem na face do Apocalipse”.

É baseado no Questão, criação de Steve Ditko, seguidor ortodoxo da filosofia objetivista da escritora Ayn Rand. Rand, muito influente nos círculos intelectuais e políticos americanos, defendia a liberdade e reponsabilidade invididuais como valor máximo - é egoísmo contra o altruísmo. Abominava meias-verdades.

Nos EUA, é um dos ícones do movimento libertário. No Brasil seria considerada “de direita” . Não era, mas certamente não era “de esquerda”.

A máscara de Rorschach traz as manchas do teste de personalidade que batiza o herói, ou talvez anti-herói. É preto no branco. Cada um enxerga ali o que quiser. E que se responsabilize por isso e aja de acordo com sua visão. Matizes de cinza estão proibidas.

A obra de Snyder é na verdade “Rorschach, o Filme”: um drama policial sexy e violento, que se passa num inferno urbano, onde o mal tem face e nenhuma ambiguidade é possível. Merece ser assistido, talvez mais de uma vez. Merece ser assistido do lado de alguém que nunca tenha lido o gibi.

Mas não é o meu Watchmen. Este é imortal. Vive para sempre nas páginas amareladas que comprei e li em 1988 e que mudaram minha vida.

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