Edson Ribeiro Cupertino |
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USP- “Universidade de São Paulo” |
RESUMO |
: |
O presente trabalho é fruto de investigações acerca da estrutura morfológica das |
narrativas lúdicas construídas coletivamente, popularmente conhecidas como Roleplaying Ga- |
me, e a intertextualidade presente tanto na construção da narrativa maior quanto na delimita- |
ção das personagens. Dessa forma, o jogador de RPG se utiliza de diversas mídias e suportes |
para uma melhor verossimlhança no mundo ficcional. Neste sentido, o uso do cinema e dos |
quadrinhos como fonte de informação para essas narrativas entre nossos jovens é constante, |
como será analisado observando a estrutura narrativa do filme Fantasma do Futuro (Ghost in |
the Shell- JAP). |
PALAVRAS-CHAVE: |
Roleplaying Game, Cinema, Literatura, Intertextualidade. |
Introdução |
O presente trabalho é o resultado das vivências enquanto jogador de RPG, das leituras de |
mundo e das reflexões como acadêmico das disciplinas de pós-graduação cursadas até então no |
programa de mestrado do departamento de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portugue- |
sa, não considerando em separado nenhum destes momentos, pois consideramos o processo de lei- |
tura como um aglomerado de códigos que se constroem e reconstroem no processo de enunciação |
caracterizada pela palavra e a relação que esta possui com o sujeito e o mundo. |
Primeiramente, ainda que breve, vamos delimitar os principais conceitos a cerca do jogo de |
produzir ficção chamado de RPG, elencando elementos norteadores que o caracteriza como ativida- |
de que utiliza múltiplas linguagens na construção de narrativas lúdicas. Com isso nos propomos si- |
tuar o leitor como um sujeito manipulador de ficções do universo midiático. |
Finalmente, utilizaremos a obra cinematográfica Fantasma do Futuro ( |
Ghost in the Shell |
– |
JAP) como corpus de análise para ilustrar algumas estruturas do maravilhoso bélico e multiplicida- |
de de elementos que norteiam a coerência da construção da personagem ficcional na atividade lúdi- |
ca em estudo. |
O que se segue neste estudo é uma introdução à análise construção ficcional contemporânea |
entre os jovens que, longe da pretensão de serem autores, vem produzindo estórias com base nou- |
tras artes do nosso tempo. A manipulação da informação na construção de uma personagem é algo |
que estaremos brevemente apresentando e, simultaneamente, fazendo uma analogia ao enredo da |
própria obra em estudo, cuja manipulação da informação é um eixo narrativo importante. |
Edson Ribeiro CUPERTINO, mestrando. |
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Universidade de São Paulo- Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas |
E-mail: edsoncupertino@yahoo.com.br |
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RPG: CONCEITOS BÁSICOS E BREVE HISTÓRICO |
Os R.P.G.s (sigla em inglês de |
roleplaying game |
) são jogos de interpretação, que retomam o |
2 |
costume milenar de contar estórias se aproveitando de elementos da interatividade da sociedade |
pós-moderna, resultando numa atividade que favorece a criatividade, o trabalho em equipe e a ima- |
ginação criadora |
durante as partidas.São jogos de produzir ficção (Cf. RODRIGUES, 2004, p. 18) |
3 |
que possuem como princípio a narrativa lúdica, em grupo e momentaneamente construída. |
Numa perspectiva literária, o livro contempla o espírito humano, problematizando ou refor- |
çando uma prática necessária para uma vida mais criativa, crítica e culturalmente rica. Nesse senti- |
do, o objeto novo na Literatura Infantil e Juvenil em estudo utiliza a tríade livro, leitor, brincadeira |
(não necessariamente nessa ordem) numa busca de resgate de estruturas literárias para uma recons- |
trução narrativa única, promovida pela oralidade e pelo jogo. |
Os primeiros exemplares dessa modalidade lúdica chegam ao Brasil por meio de intercâmbios |
entre estudantes brasileiros no exterior, que rapidamente se propagam por meio da cultura xérox |
(Cf. PAVÃO, 2000, p. 114.) por toda década de oitenta entre os aventureiros desses manuais ainda |
sem tradução. No início dos anos noventa, no entanto, surgem editoras que traduzem e lançam os |
primeiros jogos de RPG para o mercado nacional. Paralelamente, produções originalmente nacio- |
nais, como o Tagmar ganham espaço. Ainda na referida década, iniciam-se os primeiros encontros |
internacionais sobre o gênero, cada vez mais divulgando essa modalidade de livro-jogo. Tal cresci- |
mento gerou, como nos quadrinhos nos anos quarenta, preconceitos sobre o R.P.G e a sua leitura |
(Cf. PAVÃO, 2000, p. 18.). |
Sob a ótica de Nelly Novaes Coelho (2000, p. 134), |
(...)o que define a |
contemporaneidade |
de uma literatura é sua intenção de estimular |
a consciência crítica do leitor; levá-lo a desenvolver sua criatividade latente; dina- |
mizar sua capacidade de observação e reflexão em face do mundo que o rodeia; |
torná-lo consciente da complexa realidade-em-transformação que é a Sociedade, |
onde ele deve atuar, quando chegar a sua vez de participar ativamente do processo |
em curso. |
Enquanto |
modus operandi |
, a estória é narrada, cada ouvinte “manipula” um personagem que |
toma atitudes e muda ou, mais precisamente, reconstrói o curso da narrativa estimulado pelo movi- |
mento do percurso narrativo que compreende a existência do herói. Dessa maneira, a interatividade |
(possibilidade de alterar ou participar ativamente de algum acontecimento) passa a ser peça funda- |
mental no mecanismo de jogo, posto que são por meio das tomadas de atitudes dos jogadores que as |
personagens ganham vida literalmente, pois uma das regras desse tipo de jogo mostra que quando |
um jogador está numa partida, a sua fala configura a fala da personagem e, logo, a sua interpreta- |
ção. Nesse sentido, curioso observar que o auto-conhecimento enquanto personagem representa |
também uma re-leitura do próprio jogador, numa via de mão dupla entre a narrativa ficcional e a |
narrativa da vida. |
Misto de regras e improviso, de interpretação e sorte |
, os roleplaying ultrapassam a forma do |
4 |
livro tradicionalmente conhecido e estende os tentáculos do universo lúdico para o campo do fantás- |
tico-maravilhoso e da criação ficcional, que deixa de ser algo restrito ao universo da escrita e de cu- |
nho solitário para acontecer numa atividade oral e coletiva. Segundo Sonia Rodrigues (2004, p. |
Embora a tradução literal seja jogo de representação, ou jogo de representar papéis, o caráter lúdico das narrativas de |
2 |
R.P.G.s ultrapassam o que se conhece no teatro como script. Diferentemente deste, o que segue nos jogos em análise é |
narrativa construída coletivamente, temperada pelo elemento de sorte e improviso. |
Acreditamos que, da mesma forma que em Júlio Verne, os jogadores de RPG se utilizam de regras das ciências natu- |
3 |
rais e sociais para dar maior verossimilhança aos personagens, bem como no tratamento narrativo dado às ações entre |
personagens na tensão própria que é a narrativa entre narrador-jogador. Portanto a intertextualidade é fundamental para |
buscar referências diversas fora do que é apontado pelos livros de regas. |
Em virtude do lançamento de dados e da constituição da ficha de personagem, a narração torna-se jogo e em determi- |
4 |
nados momentos ocorre o contrário, quando a interpretação dos dados dão forma para uma nova seqüência na narrativa. |
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161), “a atividade dos jogadores parece buscar a leveza como reação ao peso da vida, a leveza da |
fantasia que acompanha a literatura popular através dos tempos, a leveza da ficção abrandando a |
realidade”. |
Filho de um mundo industrial pós-moderno, esse tipo de jogo utiliza a oralidade, elementos |
do maravilhoso e o que há de princípio nos jogos de videogame: controle de personagens e uma |
missão a realizar no papel do herói. No entanto, a restrição dos controles dos aparelhos eletrônicos é |
quebrada com a narrativa, que definitivamente dá asas à imaginação criadora no processo de cons- |
trução textual cujas bases e regras são as da ficção. Portanto, para Steve Jackson (1991, p. 08): |
(...)um roleplaying game bem jogado ensina cooperação entre os jogadores e am- |
plia seus horizontes. No entanto, ele não é uma coisa puramente educacional. É |
também uma das formas mais criativas de entretenimento. A maior diferença entre |
o RPG e as outras formas de diversão é que a maioria delas é passiva, i.e., a audi- |
ência senta e assiste sem tomar parte no processo criativo. No RPG a audiência |
participa do processo de criação. Enquanto o GM [Game Master] é o principal con- |
tador de histórias, os jogadores são responsáveis pela criação dos personagens. Por- |
tanto, se eles quiserem que alguma coisa aconteça na história, então |
farão |
(grifo do |
autor) com que aconteça, porque são parte integrante dela. |
Como um oxímoro, passado e presente se fundem na construção de narrativas orais num |
mundo regido pelo técnico, visual e digitalmente constituído. Na contra-mão das tendências, os |
Ro- |
le Playing Games |
exigem dos participantes apenas o encontro físico, a socialização, a troca de in- |
formações, o diálogo entre seus pares na sobrevivência de suas criações enquanto personagens e na |
busca da realização do papel do herói. |
Quero um cenário que valorize a interpretação, os sentimentos e dramas dos perso- |
nagens e eu sei que isso é possivel em D&D, não só in Storyteller. Quero um cená- |
rio, que ao mesmo tempo tenha aquele clima de fantazia, masque seja adulto tb. |
Não sei se é um exemplo bom, mas tem o mangá X da clamp, que embora tenha |
seus elementos fantaziosos, tem um clima adulto e com elementos sentimentais. |
Outros exemplo é o Gunnm (ou Battle SAngel Alita) e Evangelion, principalmente |
o último, que é psicologicamente forte. Embora vai ter seu clima medieval eu que- |
ro um clima q não tem presente nos cenários atuais (pelo não os que eu conheço). |
Não sei se um bom exemplo, mas alguns mangas sérios possuem este clima. |
5 |
Essa seleção de elementos e temas que colaboram com o enriquecimento da aventura é feita |
levando-se em conta o papel temático das personagens, a morfologia do conto maravilhoso e a cir- |
culação de objetos de valor numa perspectiva da gramática greimasiana. Daí a importância de res- |
gatar as origens literárias dessa brincadeira sob uma ótica comparativista, que tem entre tantas tare- |
fas e debates, pensar a recepção de uma obra numa dada região e, em última análise, reconhecer |
qual é o diálogo que este tipo de jogo traça com outros textos dentro da estrutura significante que |
analisaremos adiante na produção cinematográfica. |
2 -A construção da personagem na ficção científica e no RPG: algumas considerações |
Em |
Ghost in the Shell |
, o delineamento do destino na protagonista se mostra ao leitor- |
6 |
jogador |
como um fator de construção partindo do global ao específico. Da produção para o sujeito, |
7 |
Este fragmento selecionado foi retirados de site de discussão sobre RPG com autorização expressa de seus autores. Por |
5 |
motivos de extensão do trabalho monográfico, estes textos não foram colocados na íntegra, mesmo sob a forma de ane- |
xo. Da mesma forma, os erros de ortografia e de concordância foram mantidos da forma como o material foi entregue |
ao pesquisador. |
Ghost in the Shell |
(Fantasma do futuro), JAP, 1995. A trama da obra em análise gira em torno da procura e prisão de |
6 |
um hacker conhecido como manipulador de bonecos, que utiliza-se de uma memória virtual para implantar lembranças |
3 de 9 |
do aparato industrial para o |
modus |
artesanal tão caro aos dias atuais, implicando no manuseio da |
informação dos meios literários e de comunicação de massa para construir algo que não pertence a |
nenhuma das fontes... origem que perde-se com a fusão das formas. |
A ficção apresenta na abertura a construção da personagem |
8 |
num jogo de seqüências em que |
promove elaboração industrial do ciborgue, que silenciosamente ganha vida por meio das regras do |
processo científico e industrial do universo ficcional. A ficha de personagem no jogo de RPG parte |
do mesmo princípio: mecânicas, traços matemáticos e regras que só ganham sentido com a produ- |
ção ficcional por excelência. A alma pela qual busca a personagem já nos primeiros instantes da |
animação é a narratividade que o jogador busca imprimir nas suas aventuras com o seu personagem |
nos jogos de representação. Argumenta Tânia Pellegrini (2003, p. 31) que |
Em se tratando das narrativas contemporâneas, que dialogam com os quadrinhos, a |
propaganda, os |
vídeo games |
, mas sobretudo com a televisão (...), não parece fora |
de propósito pensar que as personagens são moldadas à imagem e semelhança de |
um novo sujeito, basicamente urbano, habitante dos grandes centros e produto de |
um complexo processo em que a representação das relações sociais requer a medi- |
ação de uma tentacular estrutura comunicacional, numa espécie de triângulo for- |
mado por si, pela mídia e pela realidade. Trata-se de um processo novo na história, |
calcado agora não na simples reprodução, mas na proliferação da imagem eletrôni- |
ca e só é possível se efetivar pela simbiose entre o mercado e os meios de comuni- |
cação de massa. |
Ainda dentro do seu quarto, a protagonista tem seu olhar lançado ao leitor. Um olhar que |
promove uma busca: de um lado a necessidade da quase máquina de ser Homem, do outro, o nosso |
sonho por longevidade e poder. O movimento das mãos no plano inferior do vídeo é claro: primeiro |
eu sinto o mundo, depois eu o manipulo. A sombra da protagonista se trocando é reveladora, uma |
sombra sobre a cidade, metáfora do fantasma que virá a ser para o leitor, sombra cujo significado |
remete a um vazio que vai culminar na conspiração de invasão de memórias que fará fundir vida |
privada e condição pública do sujeito. Sob a introspecção da personagem pelo olhar, afirma Adauto |
Novaes (2005, p. 309) que |
Sob a ditadura da visão imediata, o olhar perdeu sua abrangência panorâmica. Isso |
vale também para o rosto: hoje não há mais o costume sistemático de retratar, com |
o que se fez uma verdadeira fisionomia de uma época. Sem personagens nem ros- |
tos, a literatura tornou-se introspectiva, voltada para os mistérios e percalços da |
alma humana. E a pintura, por seu lado, mergulhou cada vez mais na abstração. |
A questão do fantasma, reflexo do homem que busca algo perdido, é uma questão a ser traba- |
lhada ao longo das seqüências. Essa situação se passa por meio de uma sombra, do reflexo na água |
ou pelo espelho, nos transeuntes da cidade e até na condição tecnológica através da camuflagem |
termo óptica. Em todos esses momentos, o que se busca é estar presente sem ser notado ou notar a |
presença de algo invisível. A utilização da camuflagem termo-óptica é a condição de busca ao invi- |
sível, juntamente com uma espécie de óculos, como se fosse preciso olhar de outra maneira para |
tornar possível enxergar além das aparências, ir além do olhar ou duvidar do de uma provável apa- |
rência momentânea. Ainda citando Adauto Novaes (2005, p. 311), |
nas mentes cibernéticas. Tal procedimento, além de ser ilegal e totalmente desumano, repercute na busca por respostas: |
quais são as suas intenções? |
Tal como um conto policial, a visão do espectador é fragmentária, momentânea e parcial, que possui como filtro e fio |
condutor a personagem protagonista conhecida como Major, uma ciborgue policial do Setor 9. |
7 |
Numa perspectiva do texto como um processo dialógico em constante construção, acreditamos que o jogador seja um |
leitor constante, sob a égide de aplicar o fruto de suas matrizes ficcionais numa narratividade que é particularmente a |
sua, no caso do jogador e num processo mais amplo de autoria coletiva, no caso do narrador, ou mestre de RPG. |
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O processo de construção da personagem nos RPGs também obedecem a determinado sistema de regras, que conduz a |
tarefa de criação de um sujeito que possui uma forma, mas lhe perde o conteúdo. No jogo e na animação, a criação o- |
corre de imediato e sem uma relação aparente com o passado, cabendo esta construção ao narrador e jogador, ao narra- |
dor ou tão somente ao jogador ou espectador, se o passado e os motivos da personagem perpassarem por toda a obra na |
subjetividade. |
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Nas cidades, os olhos não vêem coisas, mas figuras de coisas que significam outras |
coisas. Ícones, estátuas, tudo é símbolo. Signos urbanos, como as placas, letreiros, |
anúncios... Na natureza, a paisagem é que muda, árvores e pedras são apensas aqui- |
lo que são. Aqui, porém, tudo é linguagem, tudo se prest a de imediato à descrição, |
ao mapeamento da cidade. O olhar percorre as ruas como se fossem páginas escri- |
tas: a cidade diz como se deve vê-la. Como é realmente a cidade sob esse carregado |
invólucro de símbolos, o que conta e o que esconde, parece impossível saber. |
A verticalização da cidade é a sua relação com a informação, nos remetendo ao ciberespaço, |
onde a gama de informações é infinita em suas interconexões principalmente em virtude da alta tec- |
nologia presente nos grandes centros. Embora menos poluída visualmente, os prédios formam uma |
parede que exigem um cuidado com o olhar, onde é preciso ver o invisível presente na teia de co- |
municações num mundo de alta tecnologia. Sobre tal observação, argumenta Tânia Pellegrini (2003, |
p. 25) que |
O cinema pode, com mais facilidade, diluir as figuras humanas no continuum do |
mundo prosaico das ruas e contaminar o teor dos conflitos com tal senso de experi- |
ência ordinária. Em outras palavras (...) o cinema teria uma evocação mais empiris- |
ta, de observação da experiência no que ela tem de inserção no espaço e no tempo |
comuns, em que é mais difícil demarcar as fronteiras do que é essencial e do que é |
acidente. |
Os momentos de tratamento panorâmico dado pela câmera, seguido de um recurso sonoro que |
oculta as vozes da cidade, seja na região central ou periférica, nos remete à problemática da massi- |
ficação do sujeito urbano, muitas vezes desprovido de voz. Sendo uma obra de investigação polici- |
al, os protagonistas reconhecem mais a net como verdade do que a possibilidade de interrogar al- |
guém sem um ‘fantasma’, transformando o homem num signo potencialmente corrompido (ou re- |
criado?) pelo antagonista. Neste sentido, afirma Adauto Novaes (2005, p.315) que “(...)a paisagem |
não é nunca um lugar – a que se pertence. Neste sentido, ela é que leva ao deslocamento, não o in- |
verso. ‘A paisagem desola o espírito’.” |
A seqüência construída no olhar panorâmico num passeio de barco pela cidade parece procu- |
rar algo ou um indício de que a protagonista seja também um simples boneco que está sendo mani- |
pulado pelo governo ou se existe algo mais. O passeio por entre velhos prédios e outros em constru- |
ção é o oxímoro do velho e do novo, daquele já construído em contraposição ao que virá. O tempo |
simbólico caminha em câmera lenta observando os transeuntes que, no entanto, salta aos olhos da |
heroína alguém, de relance, que está próximo a uma vidraça de uma lanchonete, é o seu reflexo, a |
sua cópia, seria ela |
também |
produzida em série? Tempo humano que torna simbólico o que é ob- |
servado, como afirma Tânia Pellegrini (2003, p. 24) |
A ‘espacialização do tempo’ ou a ‘temporalização do espaço’ empreendidas pela |
câmera há mais de cem anos permitem que hoje, nas narrativas contemporâneas, as |
realidades ficcionalmente representadas não sejam únicas, mas plurais, incluindo |
‘mundos possíveis’ no tempo e no espaço (...) construídos pela memória, pelo so- |
nho ou pelo desejo. |
A busca por identidade é o eixo do percurso narrativo, cujo desenlace se dará com o seu en- |
contro com o antagonista. Questão que também é muito importante para o jogador e o seu persona- |
gem, cuja construção, crescimento e navegação pelas narrativas sua e de outros constituem a unici- |
dade da ficção nos |
roleplaying game |
, unidade que ganha forma na oralidade e no lúdico. |
Na película em análise, o oxímoro é o eixo primário da narrativa. Para impedir que as perso- |
nagens manipuladas participem da trama ao lado do Manipulador de Bonecos, é necessário descons- |
truir a narrativa que lhes fora implantada, alimentando a personagem com informações que o levam |
a acreditar que as suas lembranças foram implantadas. |
Aqui existe uma referência clara à manipulação e transformação do que é contado, como é o |
caso dos RPGs. Neste, a verossimilhança se constrói no conjunto das informações, presente nos li- |
vros do gênero, na fusão de elementos e na tensão de forças que resultam na narrativa propriamente |
dita: manipulação de informação que na literatura comparada conhecemos como processo de inter- |
textualidade, binariedade como condição inicial para a disjunção do objeto de valor que promove a |
5 de 9 |
busca, para a aventura que caracteriza toda ficção. O espelho da binariedade é apresentado por uma |
voz que lança mais um enigma ao enredo em |
Ghost in the Shell |
9 |
: vejo para ser visto; vejo para |
construir o |
meu |
olhar. Segundo Tânia Pellegrini, (2003, p. 25), |
Esse tipo de representação da realidade materializa a bidimensionalidade, pois a- |
comoda vários mundos possíveis, fragmentos de ordens diferentes colocados lado a |
lado, os quais, aparentemente, nada têm em comum, mas são a transposição literá- |
ria da colagem e da montagem (...) que tanto pode incluir a superposição de estados |
subjetivos, fantasias e pesadelos, como outros planetas, civilizações perdidas, luga- |
res exóticos. A |
zona |
[termo que Brian McHale usa para definir esse novo espaço] é |
um |
constructo textual |
, tal como as personagens e objetos que a povoam ou ações |
que nela se desdobram. |
No entanto somente quando a protagonista vai de encontro ao Manipulador de Bonecos, é que |
encontramos os reais motivos de uma dualidade que equivale a inúmeras situações da vida, refletin- |
do também no universo da informação na terceira revolução industrial: o que chamaremos aqui de |
código binário da vida. A binariedade pode ser representada em vários trechos, observemos al- |
guns.Primeiramente, o oxímoro homem |
versus |
máquina já discutido, que também nos leva de en- |
contro à questão da vida |
versus |
a morte na perspectiva de objetos inanimados ou de inteligência ar- |
tificial, além da condição de público |
versus |
privado materializado nas invasões mentais com finali- |
dade de construção da memória. |
Finalmente, a massificação do indivíduo da sociedade industrial cede lugar para a criatura que |
torna-se ser criador, onde sujeito passa a manipular a informação com interesses próprios, navegan- |
do no mar da informação em busca de repostas que a protagonista precisa ou quer se aventurar no |
fluxo invisível da informação. |
Binariedade que termina com o leitor de RPG e promove a fusão dos elementos capturados de |
obras diversas para construir a sua narrativa, numa multiplicidade de processos que promove um |
curioso movimento no jogo entre dominar e ser dominado. A própria construção da personagem |
acompanha esse movimento, onde as asas da imaginação dialogam com as realidades ficcionais a- |
presentadas pelo mestre, cujas regras da ficção e do jogo muitas vezes fazem a criatura fugir do |
controle do criador; como ocorre com a protagonista surpreendendo a todos quando decide de unir |
com a outra forma de vida ou o movimento dialógico presente em tantas outras narrativas, em que |
no universo de informação em que se encontra o narrador é manipulada por alguém em narrativas |
outras e em infinitos suportes. |
A relação de poder existente nos momentos de caça que culmina no controle total do manipu- |
lador de bonecos |
é clara: a Major parte de cima para o seu alvo, que é surpreendida por um tanque |
10 |
no formato de uma aranha mecânica de quatro patas. Máquina-homem contra máquina-objeto. O |
primeiro busca resposta de sua existência, o segundo existe para defender algo que está dentro do |
carro. Interessante notar a importância da observação/ descrição tanto em Júlio VERNE, quanto nos |
RPGs e em |
Ghost in the shell |
: uma breve sombra denuncia a máquina controlada pelo manipulador |
de bonecos. |
A elaboração de hipóteses, sua construção e a resolução de enigmas é presente tanto no RPG |
como em Júlio Verne, pois este utiliza o conhecimento empírico na elaboração de respostas de mo- |
do que consiga sair da situação-problema. Para o autor de Cinco num balão, conhecimento é poder e |
numa narrativa enquanto jogo a regra não é diferente. O universo da animação em análise podemos |
concluir que as mesmas premissas estão presentes, principalmente se respeitarmos a máxima que se |
trata de uma trama policial. |
Nas seqüências finais, a protagonista é totalmente inutilizada, sobrando apenas a sua mente |
intacta. Em questão de força, este atributo era mais latente no robô, que só pára de comprimir a ca- |
beça da Major no instante em que é atacado por armamento pesado do seu parceiro de investigação. |
“Porque agora vemos como por espelho, em enigma”. Trecho retirado da Bíblia em I Coríntios 13:11. |
9 |
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Considerado o início do desenlace, cujo objeto de valor se fundirá com o antagonista e o protagonista. Seqüência que |
se inicia em 1hora e 22 minutos da obra. |
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É ele o encarregado de fazer a conexão da heroína com o boneco, fazendo uma fusão de ambos, |
dando origem a um novo ser independente da vontade humana, portanto, o destino da protagonista |
depende de elementos do maravilhoso, como uma arma poderosa e a ajuda de uma entidade capaz |
de capacitar o destinatário frente ao objeto de valor que ele busca. |
A procura da protagonista pela compreensão das intenções do manipulador de bonecos, fun- |
dindo-se com ele para ganhar não só uma outra forma física como também mental é a metáfora da |
intertextualidade numa perspectiva contemporânea e cibernética de transformação do corpo e da |
mente: do mesmo modo como a Inteligência Artificial necessita de uma mistura de informações pa- |
ra sobreviver, ser autêntico enquanto vida, o narrador busca a vida da sua obra na intersecção entre |
o que tormenta a humanidade e o que esta já construiu de informações ideológicas, estéticas e cultu- |
rais. |
O caráter de aventura, superação dos desafios pela personagem na obra ora analisada não é |
nada diferente da imaginação criadora de Júlio Verne ou dos jogos de representação onde, segundo |
Andréa Pavão (2000, p. 19 |
além “(...)de pesquisar sistemas de jogos, os mestres comumente ser- |
) |
vem-se de livros de história, geografia ou ficção, gibis, filmes, fotos, buscando dados para enrique- |
cer a aventura, que é considerada tão mais interessante quanto maior seu teor de suspense, aventura, |
perigo e coerência interna.” |
Além disso, os motivos do jogador e da estrutura da personagem se cruzam, deixando a narra- |
tiva com uma construção lúdica inesperada que Tzvetan Todorov (Cf. 1970, p.22) chamou de ten- |
são narrativa, uma disputa de espaço, discursos e ações entre a personagem e o narrador num jogo |
entre a estrutura narrativa e a coerência interna da personagem. |
Ainda na esteira de Andréa Pavão (2000, p. 147), o que se vê na relação dos jogos de repre- |
sentação é uma gramática da fantasia: |
(...)uma vez construído um determinado universo, ele pode ser reescrito em diver- |
sos suportes, seja ele, um romance, quadrinho, RPG, vídeo-game, filme, e pode re- |
ceber inúmeras continuações. Quando se cria um personagem dentro deste univer- |
so, já não se é mais responsável por ele, seu personagem pode se juntar a heróis de |
outro universo e viver outras aventuras em outros tantos suportes diferentes. |
Embora na época de sua apresentação, a obra tenha sido importada, e por isso sem legenda, o |
sucesso do filme foi instantâneo, levando inúmeros narradores a acompanharem as cenas como que |
na busca por elementos imagéticos na elaboração da sua narrativa enquanto espectador e enquanto |
narrador ou jogador. Nesse entendimento da personagem, o que importava eram os estilos das per- |
sonagens, a definição da metrópole, o design dos inimigos, máquinas e armas. Tudo era passível de |
apreensão para o universo de cada leitor naquele momento. Como num videogame, a narrativa po- |
deria ser manipulada no processo de reconstrução que envolve os RPGs no intercâmbio com as ou- |
tras artes e linguagens, como os quadrinhos, obras de ficção cientifica, cinema e animação. Com |
grifos do autor, afirma Tânia Pellegrini (2003, p. 28) que |
(...) é a objetividade |
relativa |
da imagem filmada que permite sua aproximação com |
a linguagem, numa nova maneira de organizar a matéria narrada, por meio da |
mon- |
tagem |
, a qual manifesta, tanto no filme quanto na literatura, uma orientação mais |
espacial que temporal da realidade: uma corrente de ‘imagens visuais’ que flui, en- |
globando tempos e espaços diversos. Com o intercâmbio e a interpenetração dialé- |
tica daquilo que se |
vê |
e daquilo que se |
diz |
, cria-se algo novo na literatura. |
Na busca por referências a outros textos ou mídias, o narrador ou o jogador se vale da obser- |
vação das ações, dos detalhes e descrições da obra para transportar elementos que lhe interessa para |
a configuração de seu personagem ou de seu mundo durante uma narrativa de |
roleplaying game |
. |
Dessa forma, para Pellegrini (2003, p.31) ‘a narrativa passa a ser então o lugar onde se inscreve essa |
percepção (...)’ da rede midiática”. Numa montagem que resgata um movimento, uma obra, para dar |
existência à personagem. A busca por referências ficcionais no mar de informações da nossa con- |
temporaneidade é similar à procura existencial da protagonista pelo significado da sua vida. Signifi- |
7 de 9 |
cado este que começa na concepção da personagem pelo recorte empreendido pela câmera e culmi- |
na na relação entre as diversas leituras e releituras do mundo. |
Ghost in the Shell |
se traduz, numa perspectiva literária, nos diálogos internos das persona- |
gens, seus conflitos, na construção da memória digital, na tentativa de superação dos desafios e na |
busca do objeto mágico são alguns elementos que nos chamam a atenção e que acreditamos que me- |
rece uma breve análise que pode ilustrar em que sentido o jogador se apropria de outras narrativas |
para criar a sua. Mas, em última análise, a construção do universo ficcional e a apreensão que o in- |
divíduo faz deste nos interessa como prática semiótica de análise cinematográfica e, pois, a relação |
forma e conteúdo e a significação possível com outras situações envolvendo os jogos de representa- |
ção e as possibilidades de construção do olhar. |
Conclusão |
O jogador-leitor, bem como no narrador dos jogos de representação fazem da intertextualida- |
de uma prática na construção de seus personagens, encontrando em obras de ficção científica e do |
cinema de animação elementos que corroboram para uma maior verossimilhança durante o jogo da |
narrativa lúdica, caracterizado pela tensão entre narrador e jogador durante a produção ficcional. |
Tal tensão é resolvida por meio do lúdico, onde o imprevisto foge do controle da ficção, tornando- |
se jogo e fazendo o movimento contrário na busca por novas referências. |
A existência da protagonista na animação ora analisada só tornou-se única, legítima e fora da |
tendência da indústria de fazer o homem um ser de consumo no instante em que ocorreu a fusão en- |
tre protagonista e antagonista, fugindo aos padrões para uma ficção policial. Sua fusão é um ele- |
mento original no processo, elemento este que nasce no mar de informações manipuladas pela pro- |
tagonista/ antagonista, reflexo de uma prática cada vez mais comum no leitor contemporâneo e, em |
última análise, virtual. |
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Filme pesquisado: |
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- Título original: Kôkaku kidôtai. Direção Mamoru Oshii. Produção I.G., Japão, |
83 minutos, 1995. |
9 de 9 |
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